02. a calça que não me cabe mais

as mulheres da minha família cultivam um mau hábito. não é dito em voz alta, mas se aprende no olhar, no gesto repetido, na ausência de questionamento. eu aprendi com a minha mãe, minha mãe aprendeu com a minha avó, que aprendeu com a minha bisavó.. e assim seguimos, “amaldiçoadas” por essa tradição. abandonar um hábito é dolorido, porque esses tipos de hábitos - mesmo os que nos machucam - são feitos de afeto, de memória, de pertencimento. mexer nos alicerces do que nos ensinaram como “feminino” é também mexer em como fomos ensinadas a amar e ser amadas. não é à toa que existam livros e livros, posts, tweets e tiktoks sobre como desaprender um hábito.
lembro bem do dia em que aprendi, tinha seis anos. importante dizer: sempre fui uma pessoa gorda, em uma família de mulheres gordas - com exceções, mas pouquíssimas. quando se é uma criança gorda, você recebe todo tipo de conselho e comentários não solicitados sobre o seu corpo - isso não muda com a maior idade, mas você já perseguiu uma voz tempo suficiente para mandar todo mundo à merda. foi nesse contexto, crescendo mais do que o “previsto”, que me compraram uma calça jeans de um número maior e me ensinaram a guardar a de número menor. uma calça que carrega dentro dela a promessa: um dia eu volto a caber aqui. não era só roupa. era disciplina, era punição.
guardar essa calça virou um tipo de autovigilância constante. parecia inofensivo, quase banal, mas carregava a lógica do “não pertenço a esse corpo ainda”. o corpo feminino é tratado como um projeto inacabado, sempre “em construção”. e veja, não que o corpo não possa se transformar, passar por processos naturais de crescer, engordar, envelhecer, mas como se estivesse sempre disponível para ser moldado pelo que esperam dele. a calça jeans menor é isso: o molde de um corpo que ainda não é, mas deveria ser. e quando esse ritual é passado entre mulheres, atravessando gerações, vira herança. uma herança que limita e pressiona. especialmente corpos gordos, racializados, envelhecidos... corpos que se distanciam do que é lido como “beleza”.
a cultura da dieta, da juventude eterna, das roupas que quase servem, ensina que somos (eu sou) inadequadas. no “Mito da Beleza”, Naomi Wolf - sabemos que é uma figura complexa, mas.. - escreve que o culto à magreza funciona como uma nova forma de opressão: quanto mais liberdade as mulheres conquistam, mais se exige que aprisionem seus corpos em dietas, promessas, sofrimento. o jeans que não serve é só um sintoma de algo muito maior: um sistema inteiro que nos ensina a desconfiar (e até odiar) dos nossos próprios corpos.
por anos, depois de adulta, não usei calça jeans. porque vestir jeans era lembrar que meu corpo precisava provar algo. quando decidi abandonar esse hábito, passei por todas as fases do luto. neguei que me fazia mal. senti raiva por ser uma mulher gorda ensinada tão cedo a se odiar. barganhei com Deus e com todos os Orixás por um corpo impossível. me deprimi pelas camadas de absurdo que cabiam nesse tecido - nessa promessa de que, se eu me esforçasse o bastante, caberia. até que um dia, sem alarde, comprei uma calça jeans. do meu tamanho. como um tipo pedido de desculpas - e talvez como uma nova promessa: não de mudança, mas de respeito, de compreensão que ignorar o problema não vai fazer com que se resolva ou que machuque menos.
romper com esse tipo de padrão é uma jornada de sofrimento. não porque o hábito em si seja bom, mas porque ele está entrelaçado a lembranças, rituais de afeto, memórias familiares. abrir mão da calça menor é, muitas vezes, abrir mão de uma linguagem comum com outras mulheres da minha história. será que ainda sou amada, reconhecida, incluída, se não participo mais desse pacto? como nos lembra Roxane Gay, no livro “Fome”, existe solidão em viver num corpo que incomoda - mas existe também compreender que nem toda solidão é sofrimento, tem muita potência em não mais pedir desculpas por ser um corpo que incomoda.
hoje, caber na calça do meu tamanho é um ato político. recusar a vigília, a punição, o padrão, o “quando eu emagrecer”, é uma pequena revolução - e eu celebro todas as pequenas revoluções, como quem sabe o trabalho que dá. talvez essa seja a tradição que quero inaugurar: não guardar a roupa do corpo que não tenho e cuidar do corpo de agora. se alguma herança me cabe transmitir, que seja essa, a liberdade de existir do tamanho que se é.